Integrando as Mudanças Climáticas ao Planejamento Municipal de Redução de Riscos: Construindo Cidades Resilientes
Desde 1970, a temperatura da superfície global tem aumentado de forma mais acelerada do que em qualquer outro intervalo de 50 anos nos últimos dois milênios (IPCC, 2021). Os extremos de calor tornaram-se mais frequentes e intensos, enquanto os eventos de frio têm diminuído. A ocorrência de chuvas intensas e períodos prolongados de estiagem também tem se tornado mais comum, ampliando os riscos de inundações e secas em diversas regiões do mundo. Projeções de modelos climáticos indicam que esse aquecimento persistirá até pelo menos meados deste século, independentemente do cenário de emissões adotado. Mesmo com políticas rigorosas de mitigação, é provável que o aquecimento global ultrapasse os 2 °C em relação aos níveis pré-industriais ainda durante o século XXI (IPCC, 2021). Diante desse cenário, torna-se essencial o planejamento e a implementação de ações integradas de mitigação e adaptação, considerando as vulnerabilidades específicas de cada território. Enquanto as medidas de mitigação buscam conter as emissões de gases de efeito estufa (GEE), as ações de adaptação visam lidar com os impactos já observáveis e preparar as sociedades para os efeitos futuros das mudanças climáticas.
No Brasil, os impactos sobre o ciclo hidrológico são particularmente relevantes. Mudanças no regime de chuvas, com maior variabilidade e aumento da intensidade dos eventos extremos, tendem a comprometer a regularidade da precipitação em regiões como o Nordeste, parte do Centro-Oeste e do Sudeste. Isso agrava o estresse hídrico e compromete o abastecimento urbano e rural, bem como a geração de energia hidrelétrica, especialmente em bacias vulneráveis como as dos rios São Francisco e Paraná. A elevação das temperaturas intensifica a evapotranspiração, reduzindo ainda mais a disponibilidade hídrica para as áreas agrícolas e urbanas. Além disso, em períodos de estiagem, a concentração de poluentes tende a aumentar nos corpos d’água, favorecendo a proliferação de cianobactérias e prejudicando a qualidade da água. A competição entre diferentes usos — abastecimento humano, irrigação, indústria e geração de energia — torna-se mais intensa, exigindo modelos de governança hídrica mais eficientes e integrados.
No Espírito Santo, projeções regionais realizadas por Soares (2023) com o modelo Eta-CPTEC, em alta resolução, indicam um aumento significativo da temperatura média, entre 2,5 °C e 3,5 °C em cenários moderados e podendo alcançar 6 °C até a década de 2080 no cenário mais extremo. Estudo conduzido por Meira-Neto et al. (2023) aponta para uma redução expressiva das precipitações médias na bacia do rio Doce, o que implicará em quedas nas vazões médias (Qmed) e na Q90, tanto nos afluentes quanto no leito principal do rio. Também se projeta um aumento no número de dias consecutivos secos, que poderá ultrapassar 70 dias em algumas áreas do norte do estado. Esses impactos afetam diretamente a agricultura, responsável por mais de 30% do PIB estadual, com destaque para o cultivo do café, presente em 61 dos 78 municípios. De acordo com Oliveira et al. (2023), o aquecimento global tende a comprometer a produção de café conilon, provocando flores estéreis, menor crescimento das plantas e queda na qualidade e na produtividade dos frutos, podendo forçar a migração das lavouras para regiões de maior altitude — o que também se aplica a culturas relevantes como banana, pimenta-do-reino e mamão.
As mudanças climáticas também intensificam a ocorrência e a gravidade dos desastres naturais. O aumento das temperaturas, a alteração nos padrões de precipitação e a elevação na frequência de eventos extremos contribuem para secas prolongadas, ondas de calor, inundações, tempestades severas e processos de erosão e deslizamento de encostas. Embora esses fenômenos possam ter causas naturais, o seu agravamento é impulsionado pelas emissões antrópicas de GEE. Além disso, o aumento do nível do mar e a salinização de aquíferos agravam os riscos nas áreas costeiras, com consequências diretas para os ecossistemas e as populações urbanas, sobretudo aquelas em situação de vulnerabilidade social. A literatura científica e os relatórios do IPCC reforçam que os efeitos das mudanças climáticas potencializam significativamente os riscos de desastre, especialmente quando combinados com desigualdade, ocupação desordenada do solo e infraestrutura deficiente.
Os prejuízos causados por desastres associados ao clima têm aumentado nas últimas décadas. Segundo o Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2iD), desde 1995, os eventos naturais no Brasil resultaram em cerca de R$ 114,21 bilhões em danos materiais e R$ 423,05 bilhões em perdas econômicas, das quais R$ 365,43 bilhões afetaram o setor público e R$ 57,61 bilhões o setor privado (MDR, 2024). Estiagens e secas lideram em impacto econômico, com R$ 310,05 bilhões em prejuízos, seguidas por inundações, enxurradas e chuvas intensas, que somam R$ 169,44 bilhões. No Espírito Santo, desde o ano 2000, foram registradas 137 mortes associadas a desastres, com perdas materiais de aproximadamente R$ 5,72 bilhões e prejuízos econômicos totais de R$ 23,23 bilhões — sendo a maior parte concentrada no setor privado. Diante da intensificação desses impactos, é urgente a formulação de políticas públicas de adaptação e gestão de riscos que sejam integradas, baseadas em evidências e orientadas para a redução das vulnerabilidades socioambientais.
Justificativa
Os Planos Municipais de Redução de Riscos (PMRR) são instrumentos estratégicos elaborados pelas prefeituras com o objetivo de identificar, analisar e mitigar riscos associados a desastres naturais, como deslizamentos, inundações, alagamentos e outros eventos de natureza geológica ou hidrológica. Por meio da caracterização de áreas vulneráveis, o PMRR propõe medidas estruturais e não estruturais que visam reduzir ou eliminar os riscos, com foco na proteção da população e na minimização de danos materiais, sociais e econômicos. Trata-se de um instrumento essencial para a gestão pública local, pois orienta a tomada de decisões técnicas e políticas, define prioridades de investimento e permite a alocação mais eficiente dos recursos financeiros disponíveis. Também fortalece a atuação da defesa civil e contribui para um planejamento urbano mais resiliente. A obrigatoriedade da elaboração do PMRR está prevista na Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, instituída pela Lei nº 12.608/2012. Para apoiar tecnicamente esse processo, o Ministério das Cidades lançou o guia “Periferia sem Risco: Guia para Planos Municipais de Redução de Riscos” (Brasil, 2024a), elaborado em cooperação com universidades públicas e administrações municipais. O PMRR permite a identificação precisa das vulnerabilidades e o planejamento das intervenções necessárias, incluindo obras com orçamentos estimados e medidas regulatórias, como revisão de planos diretores e normas de uso e ocupação do solo. No entanto, esse instrumento ainda se concentra majoritariamente na mitigação dos riscos atuais, sem incorporar, de forma sistemática, as projeções futuras das mudanças climáticas. Paralelamente, diversos municípios brasileiros vêm elaborando Planos de Adaptação às Mudanças Climáticas (PAMC), como São Paulo (2024), Fortaleza (2020), Recife (2020) e Sorocaba (2020). Esses planos analisam vulnerabilidades climáticas e projetam cenários futuros, propondo estratégias para a construção de resiliência urbana a médio e longo prazo. A Lei Federal nº 14.904, de 27 de junho de 2024 (Brasil, 2024b), estabeleceu diretrizes nacionais para a elaboração dos PAMC, fortalecendo sua institucionalização. Enquanto os PMRR se concentram em ações concretas de curto prazo voltadas à redução de riscos já existentes — como obras de contenção, drenagem, sistemas de alerta e educação ambiental — os PAMC buscam estabelecer diretrizes estratégicas para enfrentar os impactos futuros das mudanças climáticas, como o fortalecimento da infraestrutura verde, a ampliação da arborização urbana e a incorporação de critérios climáticos nos instrumentos de planejamento. Contudo, os PAMC muitas vezes carecem do detalhamento técnico-operacional típico dos PMRR, o que limita sua aplicação imediata nas ações de defesa civil e planejamento urbano. Dessa forma, torna-se evidente a necessidade de integração entre essas duas abordagens. A incorporação das projeções climáticas e das estratégias de adaptação dos PAMC no escopo técnico-operacional dos PMRR pode resultar em um instrumento mais completo, robusto e eficaz. Este estudo propõe exatamente essa convergência metodológica, integrando análises prospectivas às etapas práticas de diagnóstico e planejamento, com o objetivo de fortalecer a resiliência climática municipal e aprimorar a capacidade local de gestão de riscos.
Objetivos
Desenvolver uma metodologia de integração dos efeitos das mudanças climáticas aos Planos Municipais de Redução de Riscos (PMRR), de modo a apoiar a gestão municipal na prevenção e mitigação de eventos extremos presentes e futuros, contribuindo para o aumento da resiliência das cidades frente às mudanças climáticas. Com base neste objetivo geral, foram desenhados os seguintes objetivos específicos:
- Elaborar uma metodologia que integre os PMRR aos Planos de Adaptação às Mudanças Climáticas (PAMC), articulando projeções climáticas futuras com as políticas municipais de identificação e redução de riscos.
- Validar e analisar a aplicabilidade da metodologia proposta por meio de sua implementação nos municípios do Espírito Santo.
- Avaliar a eficácia e as limitações da metodologia a partir da identificação de desafios práticos relacionados à sua implementação e à transferência de conhecimento para as administrações
Metodologia
O desenvolvimento da metodologia de integração entre os Planos Municipais de Redução de Riscos (PMRR) e os Planos de Adaptação às Mudanças Climáticas (PAMC), articulando projeções climáticas futuras com as políticas municipais de identificação e mitigação de riscos, será conduzido por meio de etapas sucessivas de detalhamento. Essas etapas estarão vinculadas à aplicação prática da metodologia nos municípios selecionados, permitindo ajustes progressivos com base nas experiências de campo. A adaptação metodológica será orientada tanto pelos dados obtidos nas fases de diagnóstico quanto pelas interações promovidas nas atividades de mobilização social, assegurando a participação ativa dos técnicos municipais e das comunidades residentes em áreas de risco. Busca-se, assim, consolidar uma abordagem participativa, contextualizada e operacionalmente viável.
A metodologia será aplicada em 74 municípios do estado do Espírito Santo, abrangendo todos os municípios capixabas, exceto Vitória, Vila Velha, Cariacica e Serra. Esses quatro municípios foram excluídos por já possuírem PMRR relativamente atualizados e/ou por estarem em processo de elaboração de seus respectivos PAMC.
O projeto propõe, em um primeiro momento, o desenvolvimento de um conjunto de procedimentos específicos para a elaboração dos Planos Municipais de Redução de Riscos, com foco nas áreas de urbanismo, análise e mitigação de riscos hidrológicos, geológicos, climáticos e relacionados à saúde. Esses procedimentos serão inicialmente aplicados em um município piloto, permitindo que os resultados obtidos orientem o aperfeiçoamento metodológico antes de sua replicação nos demais municípios. A aplicação nos 74 municípios será conduzida como um processo contínuo de retroalimentação, promovendo o aprimoramento progressivo da metodologia e sua adequação às particularidades de cada contexto local.
A proposta metodológica para a construção dos PMRR integrados às ações de adaptação climática está estruturada em cinco linhas de ação principais, conduzidas de forma simultânea e articulada ao longo do projeto, por meio de seis equipes temáticas: mobilização social, urbanismo, hidrologia, engenharia, climatologia e geografia. Cada linha de ação será implementada progressivamente nos 74 municípios.
A primeira linha de ação refere-se ao processo de mobilização social, com a realização de reuniões junto aos municípios para apresentação dos objetivos do projeto e sensibilização de gestores e comunidades quanto à importância da participação ativa em todas as etapas: construção dos diagnósticos, validação dos relatórios técnicos, incorporação de contribuições e realização das audiências públicas para apresentação final das propostas. Essa mobilização é essencial não apenas para garantir a efetividade e legitimidade dos planos, mas também para subsidiar o desenvolvimento e o aperfeiçoamento contínuo da metodologia de integração entre PMRR e PAMC.
A segunda linha de ação abrange o diagnóstico urbano e institucional, cujo objetivo é traçar um panorama socioespacial, ambiental, econômico e organizacional do município, identificando as capacidades e fragilidades da gestão local para conduzir ações de redução de risco e adaptação climática. Essa etapa visa construir uma representação abrangente do território, fornecendo subsídios fundamentais para a compreensão dos impactos das mudanças climáticas sobre as estruturas urbanas e institucionais.
A terceira linha de ação refere-se à projeção de cenários climáticos futuros, a partir de variáveis como temperatura, precipitação e outros indicadores relevantes para a caracterização dos riscos climáticos. Essa análise será articulada ao diagnóstico socioespacial e institucional de cada município, considerando também as projeções de crescimento urbano, econômico e populacional, bem como as áreas já identificadas como de risco. A elaboração desses cenários orienta a formulação de diretrizes de adaptação e permite um planejamento mais robusto, fundamentado em evidências científicas.
A quarta linha de ação envolve o levantamento de riscos, agrupados em quatro grandes categorias: (i) riscos geológicos e geotécnicos, como instabilidades de encostas e deslizamentos; (ii) riscos hidrológicos, incluindo inundações, alagamentos e escassez hídrica; (iii) riscos costeiros, como elevação do nível do mar e erosão litorânea; e (iv) riscos à saúde humana, com foco em doenças agravadas pelas mudanças climáticas e em eventos extremos, como ondas de calor. Essa linha de ação está fortemente articulada com a projeção de cenários climáticos, uma vez que as tendências indicadas pelos modelos podem intensificar a frequência e a magnitude dos riscos existentes.
A quinta linha de ação trata da definição de estratégias e ações de mitigação de riscos e de adaptação às mudanças climáticas. Com base na caracterização dos riscos atuais e projetados, serão propostas medidas estruturais e não estruturais. As medidas estruturais compreendem intervenções físicas e de engenharia, como obras de contenção, drenagem e infraestrutura de proteção, voltadas à redução direta dos impactos dos desastres. Já as medidas não estruturais incluem instrumentos de planejamento urbano, regulamentação, educação ambiental e fortalecimento institucional, sendo essenciais para assegurar a sustentabilidade e a efetividade das soluções adotadas. Destaca-se, nesse contexto, a importância da atuação integrada das equipes de planejamento urbano, especialmente para a incorporação de princípios de sustentabilidade e de soluções baseadas na natureza.